terça-feira, 17 de agosto de 2010

FILOSOFIA


Santo Agostinho: A fé reabilita a razão


Oficialmente, o cristianismo triunfa em 313, quando o imperador Constantino (c. 280-337), pelo edito de Milão, concede liberdade de culto aos cristãos. Na prática, porém, o cristianismo, com seus fiéis solidamente organizados sob a autoridade dos padres, dos bispos e do papa, já possuía uma instituição bastante influente: a Igreja (do grego ekklesía, isto é, “assembléia”).
Mas a elevação formal da Igreja de Roma a centro da cristandade acirrou também a disputa entre as interpretações divergentes, da mensagem de Jesus. No plano político, esse confronto de opiniões seria resolvido no Concílio de Nicéia (325), convocado por Constantino, e em outras reuniões do gênero, em que se estabeleceu a ortodoxia (literalmente, “opinião correta”) da doutrina cristã. Desse processo – do qual fizeram parte violências contra os considerados hereges – resultou a Igreja Católica, que em grego significa Igreja universal.
A consolidação da ortodoxia exige, no entanto, mais do que um ato de poder que a decrete. Ela também precisa ser convincente, apresentando-se não apenas como revelação mas também como resultado de raciocínios. A filosofia patrística (dos santos padres) representa, em algumas de suas vertentes, esse esforço de munir a fé de argumentos racionais. Dentre os santos padres, Santo Agostinho é quem leva mais longe a conciliação entre a fé e a razão: elabora a “filosofia cristã, como ele a chamaria.


O verbo em cada um


A vida de Santo Agostinho, minuciosamente narrada por ele próprio em Confissões, é quase uma demonstração, na prática, de seu pensamento: experimentou o ceticismo quanto ao conhecimento, sofreu o abismo do homem em pecado, reencontrou a esperança na graça divina, conheceu a felicidade e a certeza da verdade na fé.
Agostinho nasceu em 354 em Tagaste, na província romana de Numídia, na atual Argélia. Educou-se em Cartago, onde se tornou professor de retórica. Mudou-se para Roma e, depois, para Milão. Durante esse período, mostrou grande inquietação intelectual: leu Cícero e uma versão latina de Categorias, de Aristóteles. Em seguida aderiu ao maniqueísmo, seita fundada pelo sábio persa Mani (c. 215-276), baseado na crença de dois princípios absolutos que regeriam o mundo: o Bem e o Mal.
Mais tarde desiludidos com os maniqueus, conheceu as concepções da Academia platônica, tomadas por um profundo ceticismo. Leu também Plotino, mas a influência decisiva veio de Santo Ambrósio (c. 340-397), bispo de Milão, que indicaria a Agostinho o caminho da fé. Por fim, converteu-se em 386. Retirou-se para sua terra natal e escreveu obras como “Contra os acadêmicos”, “Da Ordem”, “De Magistro”, “Confissões da Trindade” e “A Cidade de Deus”.
O século IV e V, em que Agostinho vive, são uma época em que a filosofia, talvez com a exceção do neoplatonismo de Plotino, perdeu a confiança na razão. Mergulhada no ceticismo, ela duvida da possibilidade do conhecimento e da verdade. Cabe então a Agostinho restaurar a certeza da razão, e isso, paradoxalmente, por meio da fé. Para ele, o conhecimento da verdade é um fato, como provam as demonstrações matemáticas e lógicas, irrefutáveis. Resta então saber como tal conhecimento é possível, qual o seu aval. O homem e seu intelecto, mutáveis e perecíveis, não podem ser os avalistas do conhecimento, pois a verdade deve ser eterna. Assim, a verdade só pode ser assegurada por algo que se coloque acima dos homens e das coisas: Deus. Se a razão, na busca de sua certeza depara com a fé de Deus, é também a fé que permite resgatar a dignidade da razão: “Compreender para crer, crer para compreender”, escreve ele.
Agostinho situa-se na passagem do mundo greco-romano para a Idade Média, cujo valor preponderante é o cristianismo. De certo modo, ele próprio representa essa passagem: nutriu-se dos resquícios da cultura helenística para depois converter-se à fé cristã. Ao romper com o passado, introduziu uma noção de Deus alheia à filosofia de até então, Agostinho o faz de um modo que caracteriza uma certa continuidade da tradição filosófica.
A rigor, essa continuidade é a confiança na razão, sem o que a filosofia nem se quer existiria. Agostinho esforça-se por reabilitar a razão diante da fé. Ele serviria ao menos (mas não só isso) para demonstrar a necessidade do credo.
Traduzindo a idéia estóica de que tudo participa do logos, que é corpório, Agostinho afirma que o conhecimento é dado pela presença íntima, em cada homem, do verbo feito carne (Cristo), cuja verdade e certeza o ser humano expressa por meio das palavras.

As cidades, dos homens e de Deus


Para Agostinho, Deus, como o uno de Plotino é o transcendente absoluto, indizível, pois nada se compara à sua divina perfeição. Por isso, sua teologia (conhecimento a respeito de Deus) é de caráter muito mais negativo do que afirmativo: “Se não podeis”, escreve, “compreender agora o que Deus é, compreendei ao menos o que Ele não é (...)”.
Insondável, acima da razão humana, Deus é único mas também três: Pai é a essência divina indizível; Filho é o Verbo e o Logos; Espírito Santo é o amor divino que cria tudo que existe. A trindade assemelha-se em parte, às três hipóteses idealizadas por Plotino: o próprio uno, que é absolutamente transcendente; a Inteligência, que torna inteligíveis as coisas; e a Alma, que dá vida aos seres.
Feito à imagem e semelhança de Deus, o homem reproduz nele mesmo a trindade: a existência (Pai), o conhecimento (Filho) e a vontade (Espírito Santo). A ordem do mundo é bela e boa, pois é criação de Deus. Isso significa que o mal propriamente não existe: é apenas o afastamento em relação Deus, o que no homem se manifesta como pecado.
O pecado é a subversão da bela e boa ordem criada por Deus, e aparece, por exemplo, quando a alma se torna serva do corpo. O livre-arbítrio, a vontade humana, é importante para buscar a salvação. Nesse sentido, para Agostinho, a bondade e a caridade não são meios de salvação, pois tais atos são resultado da eleição divina. Nesse aspecto, o pensamento agostiniano é radicalmente contrário à tradição filosófica, que via na salvação (ou na felicidade) o resultado do esforço do homem, pela filosofia. O Deus dos filósofos não é o Deus cristão, e, se Agostinho percorre os caminhos da filosofia, é para reafirmar com maior vigor sua fé na onipotência de Deus.
A história da humanidade é a história do pecado do homem, por livre-arbítrio, e a salvação de alguns predestinados, pela graça divina. Os que pecam formam a cidade terrestre, que é o mundo dos homens. Essa cidade não é necessariamente má, mas, governada pela vontade humana, tende para o pecado e é de tempos em tempos castigada por Deus – como foi o caso, por exemplo, do dilúvio universal. Agostinho propõe assim uma filosofia da história: a finalidade da história, que coincide com seu fim, é a vitória definitiva da cidade de Deus, com o retorno do Messias e o Juízo Final.


Coleção: Os Pensadores. História da Filosofia. Editora Nova Cultural – SP – 1999.

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